Solução de Consulta Cosit N. 75/2025: Da Inovação Jurídica Ilegítima do Atropelo Ao Instituto do Trust

Tomás Carvalho

Tomás Carvalho

I. INTRODUÇÃO


Publicada em 30 de abril de 2025, a Solução de Consulta COSIT nº 75, emitida pela Receita Federal do Brasil por meio da Coordenação-Geral de Tributação, reacendeu o debate jurídico-tributário sobre a natureza e o tratamento fiscal dos trusts estrangeiros, em especial no contexto da recente Lei n.
14.754/2023, que passou a disciplinar a tributação de rendimentos e ganhos de capital oriundos de ativos mantidos no exterior por pessoas físicas residentes no país.
A resposta administrativa, no entanto, vai além de uma simples interpretação legal: promove
verdadeira construção normativa sobre um instituto — o trust — cuja gênese, funcionamento e efeitos se ancoram em ordenamentos jurídicos de tradição common law, radicalmente distintos do modelo
jurídico brasileiro de civil law.
Ao fazê-lo, a Receita Federal incorre não apenas em imprecisões técnicas e extrapolações
interpretativas, como também em intervenção indevida sobre a essência de uma figura jurídica
estrangeira complexa, que já por si só desafia os limites tradicionais do direito brasileiro.
A premissa central do presente artigo é que a COSIT 75/2025 representa uma inovação jurídica
ilegítima, na medida em que tenta preencher lacunas legislativas com efeitos vinculantes, sem respaldo
em norma legal expressa, e ainda o faz em detrimento de uma compreensão adequada do trust enquanto instrumento jurídico típico de ordenamentos anglo-saxões.

Com isso, a Solução de Consulta impõe um tratamento fiscal distorcido, que confunde
titularidade jurídica com titularidade econômica, ignora a autonomia patrimonial do trust irrevogável e
dirigido, instituído por pessoa jurídica, e atribui renda e patrimônio a sujeitos que não mais detêm
controle, posse ou disponibilidade econômica sobre os ativos — ferindo, assim, os princípios
constitucionais da legalidade, da capacidade contributiva e da segurança jurídica.
Diante da ausência de normatização clara sobre trusts instituídos por pessoas jurídicas — como
o chamado Corporate Non-Grantor Irrevocable Trust — o papel da Receita Federal deveria se limitar à
análise cautelosa e aderente à legalidade estrita. Ao invés disso, a COSIT 75/2025 avança indevidamente sobre conceitos jurídicos estrangeiros de forma equivocada e reducionista, violando a substância do instituto e fragilizando a previsibilidade fiscal dos contribuintes que, em conformidade com a lei, estruturaram seus ativos no exterior por meio de trusts legalmente válidos e dotados de substância econômica.
Este artigo se propõe, portanto, a (i) esclarecer a natureza jurídica do trust à luz do direito
comparado; (ii) analisar a lacuna legislativa deixada pela Lei n. 14.754/2023; (iii) identificar os equívocos
técnicos da Solução de Consulta COSIT n. 75/2025; e (iv) defender, à luz do ordenamento jurídico nacional e internacional, a impossibilidade de se imputar efeitos tributários automáticos a estruturas cuja titularidade, controle e benefício estejam formal e materialmente apartados do contribuinte brasileiro.


II. NOÇÕES BÁSICAS SOBRE TRUST


Os Trusts são estruturas contratuais por meio das quais determinada pessoa (“Settlor” ou
“Grantor”) transfere a propriedade de determinados ativos a um terceiro (“Trustee”), por meio de doação ou empréstimo, quem passa a administrar os bens recebidos no interesse de determinado(s)
beneficiário(s) escolhido(s) pelo Settlor – podendo, inclusive, ser o próprio Settlor (enquanto este viver)
e/ou terceiros por este indicados –, de acordo com determinadas instruções e condições constantes
expressamente do instrumento de trust (“Deed of Trust”).
O Trust, assim, não é uma pessoa jurídica, uma estrutura empresarial, um fundo ou uma entidade.
Se trata, pois, apenas de uma relação contratual entre Settlor e Trustee, baseado na confiança e regido
pela legislação do país de sua constituição.
O Trustee se compromete a gerenciar os bens recebidos do Settlor, em nome próprio, de acordo
com as regras que foram estipuladas em contrato e com as ordens que forem emanadas pelo Settlor ou
por um diretor por este nomeado, em benefício dos beneficiários listados no Deed of Trust.
A constituição do Trust, assim como as regras que permeiam a sua estrutura e manutenção,
deve ocorrer em país que adotas as regras jurídicas do common law – sistema jurídico anglo-saxão –,
uma vez que nestes sistemas há uma distinção clara entre a propriedade legal (título) da propriedade
beneficiária. Logo, não há confusão patrimonial, como ocorre – interpreta-se – nos países de civil law.
Com efeito, uma vez instaurada a relação de trust, ocorre uma separação entre a titularidade
jurídica dos bens (que é do Trustee) e o seu beneficiário econômico. O Trustee passa, então, a deter a
propriedade dos bens em nome próprio e, não obstante, a atuar como uma espécie de gestor em relação a tais bens.
Embora tais bens estejam formalmente em nome do Trustee – não mais fazendo parte do acervo
de bens e direitos do Settlor, a depender do tipo de Trust instituído – eles constituem, na verdade um
fundo em separado, administrado pelo Trustee em nome próprio, de acordo com as regras prescritas no
Deed of Trust e/ou ordens emanadas do Settlor ou Diretor, a depender do tipo de Trust constituído:
revogável ou irrevogável).


A. Trust Irrevogável ou Irrevocable Trust:


Também chamado de “Living Trust”, se trata de um Trust criado durante a vida do Settlor ou
Grantor para administrar os seus ativos em caso de invalidez ou morte.
Esse tipo de Trust é estabelecido tendo o Settlor ou Grantor como Trustee, e outra pessoa
nomeada como Successor Trustee; podendo o instituidor, inclusive, revogar o instrumento a qualquer
momento.
O Settlor ou Grantor tem o controle total sobre os ativos do Trust até se tornar inválido ou
incapacitado. Quando isso ocorre, o Trust torna-se irrevogável e o Successor Trustee assume para
distribuir os ativos do Trust em favor dos beneficiários após a morte do Settlor, conforme indicado no
contrato de Trust.
Um Revocable Trust pode ser considerado um testamento sofisticado e aprimorado, que determina
que quaisquer ativos não mantidos no Trust sejam adicionados ao Trust na morte do instituidor.
Uma relação de Revocable Trust não oferece economia de imposto sobre a renda ou de impostos
imobiliários. Como o Settlor ou Grantor mantém o controle sobre os ativos do Trust, após a sua morte, o
valor justo de mercado dos ativos do Trust na data de sua morte é incluído em seu patrimônio bruto
tributável.

A propriedade transferida para um Revocable Trust não faz parte do inventário do falecido e,
portanto, evita o procedimento e os custos do inventário.
Segundo as orientações disponibilizadas pela Receita Federal do Brasil no contexto do Regime
Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), as pessoas físicas que tenham instituído trusts
revogáveis devem declarar a existência desses contratos para fins fiscais. Dado que o trust não é uma
entidade, mas um contrato, o Settlor ou Grantor deveria reportar diretamente os bens subjacentes ao
contrato. Portanto, os bens confiados ao Trust devem ser declarados pelo Settlor ou Grantor como bens
próprios, e os rendimentos produzidos por esses ativos deveriam ser tratados como rendimentos
auferidos diretamente pelo Settlor ou Grantor.
Em grande parte das estruturas de Revocasble Trusts detidas por residentes no Brasil, o
patrimônio contribuído ao Trust é composto por quotas de uma sociedade no exterior. Portanto, o que a
pessoa física residente no Brasil continua a declarar é a titularidade dessas quotas, beneficiando-se do
diferimento tributário: haverá tributação no Brasil apenas se e quando a empresa detida por meio do
Trust distribui dividendos ou quando a pessoa física aufere algum ganho na redução de capital ou
alienação do investimento. Nesses casos, considera-se que os dividendos e ganhos de capital são
obtidos diretamente pelo Settlor ou Grantor, devendo ser tributados no Brasil de acordo com a sua
natureza.


B. Trust Irrevogável ou Irrevocable Trust:


Se trata de um Trust criado durante a vida do Settlor, que não pode ser revogado por este,
instituidor. Ademais, o Settlor ou Grantor não dispõe de qualquer controle direto sobre os ativos e, como tal, não pode ordenar distribuições ou atos ao Trustee, sequer podem figurar como Trustee ou diretores
do Trust.

Nesse caso, há uma separação efetiva entre o Settlor ou Grantor e a propriedade dos bens
incorporados no Trust, entregues ao Trustee; embora estes possam ser listados como beneficiários do Trust.
Uma vez que os bens passam a pertencer ao Trustee, sem qualquer vínculo ou controle direto
pelo Settlor ou Grantor, este não será tributado sobre o rendimento do Irrevocable Trust, salvo se for
beneficiado com distribuições sou bens emanados do Trust (o que seria interpretado como doação,
conforme a corrente dominante, ou renda, conforme a corrente minoritária).

O Trust é gerido pelo Trustee, de forma discricionária (discricionary trust) ou conforme as ordens
emanados do Diretor do Trust (directed trust), em consonância e nos limites/poderes estabelecidos no
Contrato de Trust.


C. Trust Dirigido ou Directed Trust


Directed Trusts são estruturas relativamente novas que surgiram devido a outra lacuna no código.
Uma das principais dificuldades que muitos tinham ao formar um Trust era confiar em um administrador
terceirizado, que teria controle discricionário sobre os ativos do Trust.
O IRC (International Revenue Code) dos Estados Unidos estabeleceu que o controle deve estar nas
mãos de uma “adverse party”, ou seja, alguém que possa agir contra a vontade do Grantor ou Settlor.
Em razão disso, alguns Estados americanos, como Dakota do Sul, aprovaram mudanças
legislativas, que permitiram que o controle absoluto sobre os ativos do Trust continuasse nas mãos de
um diretor terceirizado e não necessariamente do próprio Trustee. Ao fazer isso, eles permitiram que um trustee profissional ou uma trust company detivesse o título dos ativos e, ao mesmo tempo, permitiam que o grantor permanecesse com o controle indireto sobre os ativos do Trust através de um diretor por ele nomeado.
Esses Estados, da mesma forma, permitiram self-settled Trusts, em que o grantor continuava
sendo o principal beneficiário e, também, que o grantor permanecesse como protector do Trust e com o
poder de destituir/renomear trustees e diretores. Isso, sem afetar a propriedade e o controle direto dos
ativos do Trust pelo Trustee.

III. A LACUNA DA LEI N. 14.754/2023


A Lei n. 14.754/2023, que institui um regime fiscal para a cobrança e atualização de valores de bens e direitos no exterior, trouxe importantes avanços na regulação do patrimônio mantido fora do país por pessoas físicas residentes no Brasil. No entanto, apesar de seu escopo amplo, a lei se manteve silente quanto ao tratamento específico dos trusts — figuras complexas e historicamente ignoradas pela legislação tributária brasileira.
Em particular, a Lei 14.754/2023 tampouco disciplina a separação entre titularidade formal e
titularidade econômica, tão característica dos trusts. A despeito de dispor sobre a atualização do valor
dos ativos no exterior, não há qualquer diretriz sobre como tratar, por exemplo, os bens formalmente
titulados por trustees, mas economicamente atribuídos a beneficiários em arranjos dirigidos. Assim, o
trust permanece numa espécie de limbo jurídico-tributário: não é pessoa jurídica, não é contrato de
sociedade, tampouco é tratado como estrutura fiduciária nos moldes da legislação brasileira
Essa omissão não é trivial. A ausência de menção expressa ao instituto do trust cria uma zona
cinzenta interpretativa, na qual os operadores do direito, os contribuintes e a própria Receita Federal se
veem obrigados a recorrer a analogias e construções hermenêuticas, nem sempre consistentes com a
natureza jurídica do trust, conforme concebido nos sistemas de common law.
Na verdade, não há previsão correspondente na legislação civil, triubtária ou empresarial do Brasil
acerca da constituição e do funcionamento dos Trusts. De igual modo, especialmente, não há orientação na legislação tributária sobre como devem ser tratados os eventos de transferência de bens e distribuições realizadas no âmbito dos Trusts.
O que se tem no Brasil, apenas, a partir da publicação da Lei 14.754/2023, é um início de tratamento fiscal em relação aos beneficiáros do trust, forma de declaração e apuração do imposto. E, nesse sentido, a legislação foi expressa ao disciplinar apenas e tão somente os trusts instituídos por pessoas físicas (settlor), considerando, nesse sentido, que:


a. os rendimentos e os ganhos de capital relativos aos bens e direitos objeto de trust serão
considerados auferidos pelo instituidor pessoa física do trust (settlor), até a sua efetiva
distribuição ou transferência para o beneficiário.


b. após a distribuição de bens e direitos do trust, em vida ou em decorrência de falecimento do
settlor, a titularidade dos bens e direitos passará a ser do beneficiário.


c. as distribuições de bens, direitos ou valores do trust para os beneficiários terão natureza de
doação ou transmissão causa mortis.


Nota-se, pois, que com a nova regra, o trust instituído por pessoa física passa a ser uma entidade
“transparente” para fins tributários.
Por outro lado, o trust instituído por pessoa jurídica não recebeu tratamento legislativo específico
– pelo contrário, a Lei foi expressa e direta ao regulamentar apenas o trust instituído por pessoa física –
razão pela qual não há que se “inventar” um tratamento específico em decorrência de tal lacuna.
Com efeito, a lacuna não pode ser vista como uma omissão do legislador, mas como a mais
adequada técnica legal, uma vez eu o trust instituído por pessoa jurídica (“Corporate Trust”), sendo
irrevogável, non grantor, e geridopelo Diretor (dirigido) ou pelo próprio Trustee (discricionário) (assim,
um “Corporate Non-grantor Irrevocable Trust”) faz com que a propriedade dos bens efetivamente se
transfira para o trustee, sem qualquer controle direto, gerência, irrevocabilidade ou direcionamento dos
bens e direitos pelo instituidor do trust (settlor).
O Corporate Non-Grantor Irrevocable Trust não oferece ao Settlor eventual controle ou poderes
sobre o ativo, receitas, Trustee ou sobre o próprio Trust. Isso significa que o Settolor não pode revogar ou alterar os termos do Trust ou fazer alterações nos beneficiários do Trust, sequer, promover ordens ou direcionar a gestão dos ativos.
Em termos de tributação, a falta de controle significa que um Non-Grantor Trust é tratado como
uma entidade tributária em separado do Settlorr. O próprio Trust é obrigado a pagar impostos sobre
qualquer receita recebida e apresentar uma declaração de imposto usando um número de identificação
fiscal.

Em suma, em respeito ao princípio de autonomia de vontade nos contratos estabelecidos, bem
como o respeito à legislação internacional, desde que o objeto do contrato não seja ilícito e exista
substância na estrutura adotada, em se tratando de estrutura de Trust domiciliada no exterior, o Brasil
está (ou deveria estar) submetido à soberania e adstrito à observância das regras internas do “país sede”.


Por tal razão, é que a Lei n. 14.754/2023 não tratou especificamente sobre o Trust instituído por
pessoa jurídica, mais precisamente, o mencionado Corporate Non-Grantor Irrevocable Trust, uma vez
que a sua instituição implica na real e irrevogável transferência dos ativos à propriedade e gestão de
terceiros, deixando o Settlor de possuir a propriedade, posse ou possuir qualquer poder de gestão sobre os referidos ativos.


IV. EQUÍVOCOS TÉCNICOS DA SC COSIT 75/2025


A Solução de Consulta COSIT n. 75, publicada em 30 de abril de 2025, busca preencher a lacuna
legislativa existente com relação ao tratamento fiscal dos trusts à luz da Lei n. 14.754/2023. Contudo, o faz de maneira equivocada, por adotar premissas incompatíveis com a natureza jurídica do instituto.
O primeiro equívoco é de natureza conceitual: a Receita Federal trata o trust como uma entidade
autônoma, aproximando-o de uma pessoa jurídica ou uma “figura equiparada”, dotada de capacidade
tributária. Essa leitura contraria frontalmente a doutrina especializada, a jurisprudência consolidada e a
legislação estrangeira, que definem o trust como uma relação jurídica de confiança — desprovida de
personalidade jurídica ou capacidade tributária própria.
Ora, a utilização de conceitos estrangeiros deve sempre passar por uma criteriosa análise de
compatibilidade e pertinência com o sistema jurídico nacional, sob pena de se construir ficções
desconectadas da realidade normativa, um verdadeiro atropelo ao instituto. Ao desconsiderar essa
premissa, a Cosit 75/2025 incorre em um “direito comparado mal transplantado”, gerando interpretações descoladas da função econômica e jurídica dos trusts.

O segundo erro, de ordem sistemática, está na tentativa de aplicar o regime da Lei 14.754/2023
indistintamente a todos os tipos de trust, ignorando as distinções fundamentais entre trust revogável,
irrevogável (non-grantor), dirigido ou discricionário. Ao tratar todo trust como simples “extensão
patrimonial” do instituidor (settlor), a Receita Federal elimina nuances cruciais, como a perda de controle jurídico no caso dos irrevogáveis (non-grantor), ou a existência de um terceiro (diretor ou trustee) que gere os ativos com independência.
A consequência desse raciocínio é o atropelo do princípio da capacidade contributiva, na
medida em que a mera criação de um trust, ainda que irrevogável e totalmente fora da esfera de
comando do instituidor, passa a ser interpretada como mera interposição fictícia — potencialmente
ensejando imputação de renda ou patrimônio de forma arbitrária. Ora, a ignorância das distinções
fáticas e jurídicas entre titularidade formal e substancial pode levar à tributação sobre bases não reais,
violando o mínimo existencial do contribuinte.
Por fim, a solução de consulta promove uma inovação normativa ilegítima, ao instituir, sem
respaldo legal, regras de imputação automática de renda e patrimônio à pessoa física controladora ou
titular de participação societária do settlor pessoa jurídica, inclusive em casos em que estes (Settlor e/ou sócios) não detêm mais qualquer domínio jurídico ou econômico sobre os bens — como nos Corporates Non-Grantor Irrevocables Trusts, titulados e dirigidos por terceiros independentes.
Esse tipo de construção normativa, ainda que bem-intencionada, invade o campo reservado à
lei em sentido formal e, portanto, carece de legitimidade. Até porque, conforme reiterado pelo Supremo
Tribunal Federal, “a criação de obrigação tributária deve advir de norma legal específica, em estrita
observância ao princípio da legalidade” (STF, RE 566.819/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em
04/08/2011).


V. CONCLUSÃO


Como visto, em respeito ao princípio da autonomia da vontade nos contratos privados e ao
necessário reconhecimento da eficácia dos atos jurídicos lícitos constituídos no exterior, desde que haja
substância e ausência de simulação, os trusts regularmente instituídos fora do país — como no caso do Corporate Non-Grantor Irrevocable Trust — devem ser analisados à luz das regras do ordenamento
jurídico de sua jurisdição de origem. Nesse sentido, o sistema tributário brasileiro deve respeitar os efeitos jurídicos válidos produzidos no país-sede do trust, nos limites da ordem pública nacional.
A Lei n. 14.754/2023, ao disciplinar exclusivamente os trusts instituídos por pessoas físicas, conferiu tratamento específico e transparente a tais estruturas, vinculando os ativos ao settlor até a efetiva transferência aos beneficiários. No entanto, silenciou de forma deliberada quanto aos trusts instituídos por pessoas jurídicas — como o Corporate Non-Grantor Irrevocable Trust — cuja essência jurídica se caracteriza pela separação plena e irrevogável entre os bens e o instituidor, sem qualquer poder de controle, direção ou revogação por parte deste ou de seus sócios/controladores.
Dessa forma, não se pode imputar à pessoa física, sócia ou controladora de pessoa jurídica
instituidora de trust irrevogável (Non-Grantor), a titularidade de ativos cuja propriedade já foi
validamente transferida a um trustee independente. Pressupor o contrário seria desvirtuar o instituto do
trust, violando tanto sua natureza jurídica quanto princípios estruturantes do direito tributário, como a
legalidade, a capacidade contributiva e a segurança jurídica.
Até porque, o Corporate Non-Grantor Irrevocable Trust não oferece ao Settlor eventual controle
ou poderes sobre o ativo, receitas, Trustee ou sobre o próprio Trust. Isso significa que o Settolor não pode revogar ou alterar os termos do Trust ou fazer alterações nos beneficiários do Trust, sequer, promover ordens ou direcionar a gestão dos ativos.
Assim, a falta de controle significa que um Corporate Non-Grantor Irrevocable Trust é tratado
como uma entidade tributária em separado do Settlor. O próprio Trust é obrigado a pagar impostos sobre qualquer receita recebida e apresentar uma declaração de imposto usando um número de identificação fiscal
Por isso, a Solução de Consulta COSIT n. 75/2025 incorre em dois erros fundamentais: (i) extrapola sua função interpretativa ao inovar o ordenamento jurídico, criando obrigações não previstas em lei; e (ii) desconsidera a diversidade e complexidade dos tipos de trust, tratando-os como figuras uniformes e meramente interpostas, o que resulta em um transplante equivocado do direito comparado.
De toda sorte, uma solução de consulta Cosit (Coordenação-Geral de Tributação) da Receita
Federal, quando proferida em resposta a uma consulta formal de interpretação da legislação tributária
(nos termos da Instrução Normativa RFB nº 2.058/2021), se torna uma interpretação vinculante para a
administração tributária — isto é, obriga os fiscais da Receita a seguirem aquele entendimento em suas autuações, enquanto estiver vigente. No entanto, essa solução não vincula o contribuinte, exceto aquele
que a solicitou (no caso de solução específica) ou quando ele a utiliza como referência (no caso de
solução de caráter geral).
Assim, contribuintes que discordem da interpretação contida na SC COSIT nº 75/2025 podem
adotar diferentes estratégias, como: (i) impugnação administrativa em eventual auto de infração; ou (ii)
ajuizamento de ação judicial, seja na forma de mandado de segurança preventivo, ação
declaratória ou ação anulatória, a depender da situação concreta.
Em qualquer caso, é imprescindível recordar que a incidência tributária exige hipótese legal
precisa e suporte fático idôneo, sendo vedada a ampliação da incidência por analogia ou interpretação
extensiva. A tentativa de suprir lacunas normativas — como faz a SC COSIT nº 75/2025 — não pode resultar na criação de obrigações tributárias sem respaldo legal, sob pena de afronta direta ao princípio da legalidade tributária consagrado no art. 150, I, da Constituição da República Federativa do Brasil.

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