Agências reguladoras e o sistema brasileiro de defesa da concorrência: a concorrência nos setores regulados

1. Introdução: A Intervenção do Estado no Domínio Econômico.
2. As Agências Reguladoras.
3. O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
4. A Concorrência nos Setores Regulados.
5. Conclusão
1 INTRODUÇÃO: A Intervenção do Estado no Domínio Econômico
O direito, enquanto ciência social, é gerado em função da necessidade que o homem tem de viver em sociedade, dando ao Poder Público autoridade legítima para manter, inclusive com o uso da força e violência necessária, a estrutura da organização juridicamente constituída. Isso porque não se pode conceber a vida em coletividade sem a existência de um certo número de normas reguladoras entre os indivíduos e de um ente maior e soberano que detém o encargo de zelar pelo cumprimento e respeito destas.
Tais normas variam de acordo com os costumes e a cultura de cada agrupamento, podendo ser dotadas de maior ou menor grau de coercibilidade, observando-se que seu descumprimento, via de regra, implica em uma reação da sociedade, no sentido de reprovar a atitude do violador.
O Direito Econômico é fruto direto de todas as mudanças socioeconômicas presenciadas ao longo do séc. XX, sendo, assim, um ramo jurídico concebido para disciplinar as diversas formas de interferência estatal no processo de geração de rendas e riqueza da Nação. Suas normas, princípios e regras irão variar de acordo com o momento sociopolítico no qual a sociedade se encontrar, nos termos e limites previstos pela Constituição e pelas Leis.
A atual concepção de Estado Regulador decorre da crise gerada pelo fracasso da experiência liberal, pelo superdimensionamento da atuação estatal pregada pelo Estado Social, bem como da inoperância do Estado Socialista cuja experiência histórica mostrou-se igualmente malsucedida.
Desse modo, busca-se com este modelo um retorno comedido aos ideais positivos do liberalismo (p.ex. propriedade privada e livre exercício da atividade econômica), sem, contudo, abandonar a necessidade de defesa dos interesses sociais (p.ex. função social da propriedade, livre concorrência etc.) a fim de garantir a dignidade da pessoa humana bem como os ditames da justiça social, permeados e aliados, agora, à livre iniciativa e à defesa do mercado.
No Brasil, as disposições constitucionais estabelecidas para disciplinar o processo de interferência do Estado na condução da vida econômica da Nação são denominadas de “Ordem Econômica”, prescritas expressamente na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB), no art. 170 e seguintes.
Conforme preceitua Raphael Boëchat, “a intervenção do Estado no Domínico Econômico pressupõe uma análise decantada, enxergando-se motivo (início), modo (meio) e finalidade (fim), representando um modo de agir e reger os desígnios econômicos” (MACHADO, 2016, p. 49-50).
Assim, é que esse processo de intervenção do Estado, seguindo-se o contexto de Estado Regulador prescrito no art. 174 da CRFB, pode se dar tanto de forma direta, na qual o Poder Público avoca para si a exploração das atividades econômicas (arts. 173 e 177); quanto indireta (art. 174), na qual o Estado atua monitorando a exploração das atividades econômicas, intervindo quando se fizer necessário para normatizar, regular e corrigir as falhas de seu mercado interno, em prol do bem comum e do interesse coletivo.
A CRFB de 1988 prevê o livre exercício da atividade econômica, possibilitando a intervenção indireta (condução) do Estado na Ordem Econômica, por meio das agências reguladoras e, excepcionalmente, a intervenção direta, tão somente nas hipóteses taxativas previstas no texto constitucional.
Com efeito, em que pese o legislador constituinte orientar a ordem econômica no princípio da subsidiariedade do Estado em relação ao particular, fundamentando-a na livre iniciativa, uma política de não intervenção mercadológica não deve significar um aval aos agentes econômicos, que possa representar perversão à liberdade individual destes, pelo seu uso abusivo sem controle (FONSECA, 2014, p. 215-26).
A preocupação com o aperfeiçoamento da legislação e do aparelhamento estatal brasileiro no sentido de defesa da concorrência se traduz na necessidade de possibilitar, de um lado, a atividade econômica nos moldes da CRFB e, de outro, a atuação do Estado como agente normativo e regulador da atividade economia no Brasil, ao qual compete fiscalizar, incentivar e indicar diretrizes para o setor privado, determinando-as para o setor público.
Assim sendo, para dar efetividade às previsões legais sobre a Ordem Econômica do Estado, especialmente no que tange à defesa da livre-concorrência e da liberdade de mercado por meio das Agências Reguladoras, foi criado o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, formado por uma estrutura capaz de exercer o controle preventivo e repressivo de atos que possam implicar em concentração econômica e/ou desequilíbrio de mercado.
Esse artigo tem por objetivo a compreensão da atividade regulatória exercida pelas Agências Reguladoras, no contexto do Direito da Concorrência, abordando-se aspectos concernentes à Ordem Econômica e à legislação antitruste.
2 AS AGÊNCIAS REGULADORAS
Dada a desestatização da Ordem Econômica, reduzindo-se gradativamente o campo de atuação estatal, o legislador constituinte estabeleceu como regra a não intervenção do Estado na economia.
Tal fato não significa a retomada às ultrapassadas ideias do liberalismo econômico, uma vez que o próprio texto constitucional reserva à República brasileira competência para atuar normatizando a Ordem Econômica (art. 24, I e 174 da CRFB), a fim de estabelecer suas políticas públicas de condução e organização do mercado interno e externo.
Como visto, a CRFB prevê, como regra, o exercício privado da atividade econômica, sendo conferida ao Estado a intervenção indireta e, excepcionalmente, a intervenção direta, tão somente nas hipóteses taxativamente previstas no art. 177 da CRFB.
Ao Estado, portanto, na seara econômica, é permitido atuar como agente normativo e regulador, exercendo, desta feita, uma tríplice função: fiscalizadora, incentivadora e planejadora, a teor do que preceitua o art. 174 da CRFB, por meio das Agências Reguladoras.
As agências reguladoras são figuras recentes no cenário da Administração Pública brasileira e têm como escopo a intervenção em mercados específicos. Foram concebidas ante a necessidade do Estado em gerir determinados segmentos estratégicos da economia nacional (petróleo, energia elétrica e telecomunicações), bem como em mercados de relevância social para a coletividade (saúde, abastecimento de água, transporte terrestre etc.), os quais ficavam ora sob monopólio estatal, ora à mercê exclusiva de interesses privados (FIGUEIREDO, 2011, p. 137-138).
As agências reguladoras foram geradas com o escopo de normatizar os mercados econômicos, bem como setores dos serviços públicos delegados, buscando equilíbrio entre o Governo, usuários (consumidores) e delegatários (agentes econômicos).
Como as atividades econômicas privatizadas são de grande diversidade e de especialidade bem demarcadas, o Estado cria agências reguladoras também diversificadas e especializadas para o exercício das incumbências constitucionais. Não há, contudo, subordinação hierárquica entre a Agência Reguladora e o Governo Central.
As Agências Reguladoras são autarquias sob regime especial, integrantes da administração indireta, vinculadas a Ministério competente para o trato da respectiva atividade, tão somente para fins organizacionais, sendo caracterizadas pela sua independência política, autonomia administrativa e financeira, bem como pelas prerrogativas de permanência no cargo de seus dirigentes.
As Agências Reguladoras são dotadas de independência, com o fim de garantir que não sofram influências externas e estranhas no exercício de suas funções. A independência procura dar base para a imparcialidade e neutralidade no exercício dos poderes regulatórios.
Assim sendo, assegura-se, de um lado, a independência orgânica, para dotar as Agências Reguladoras mecanismos que evitem sua subordinação hierárquica ao Governo Central e, consequentemente, à corrente ideológico-partidária que temporariamente se encontra no Poder (autonomia política). Assim, os seus atos reguladores não podem ser submetidos a revisão pela Administração.
De outro lado, assegura-se a autonomia administrativa, dotando-se as Agências Reguladoras de instrumentos econômicos e financeiros que permitem o devido exercício de suas atividades, sem precisar socorrer-se ao Governo, tendo liberdade de gestão, no sentido de arrecadar receitas próprias e organizar suas respectivas despesas, sem ingerência do Executivo, ficando tão somente sujeitas ao controle do legislativo, via Tribunal de Contas.
Todavia, em que pese a autonomia e independência de que as agências reguladoras são dotadas, elas são entes da Administração Pública, tendo, por óbvio, que se submeter aos Poderes Constituídos do Estado, exercidos por meio das funções Legislativa, Executiva e Judiciária (submete-se aos preceitos instituídos na Lei, às decisões do Judiciário e aos comandos do poder Executivo, via contratos de Gestão).
Assim, observa-se que a independência da Agência Reguladora refere-se às suas atribuições técnicas, na qualidade de ente regulador do mercado. Até porque, no fito de assegurar transparência e obter-se o equilíbrio desejado, as Agências Reguladoras submetem-se a três tipos de controle: financeiro, finalístico e de juridicidade.
O controle financeiro é exercido principalmente pelo Tribunal de Contas no que se refere à aplicação de bens e serviços a seu cargo, bem como no que tange à arrecadação e gastos de suas receitas e despesas públicas. Tal controle tem por finalidade verificar a realização das despesas das Agências Reguladoras, dentro dos estritos contornos delineados pelo art. 70 da Constituição e na legislação infraconstitucional, bem como no orçamento anual aprovado para o referido ente. O controle financeiro, em nenhuma hipótese, pode se traduzir em possibilidade de restrição ou contingenciamento orçamentário nas contas das Agências Reguladoras, evitando-se assim, que a questão do controle financeiro seja pervertida em forma de captura e interferência indireta do Governo Central na regulação técnica e independente da Agência.
O controle finalístico ou político-público é exercido, de forma restrita, pelo Executivo e pelo Legislativo, bem como por toda a sociedade, no que se refere ao cumprimento das políticas públicas, dos objetivos e das finalidades da atividade de regulação a ser alcançado pela Agência.
Assim, na ocasião da celebração do contrato de gestão entre o Governo Central e a Agência Reguladora, são fixados parâmetros e metas a serem observados e realizados por esta, como forma de garantir que não haja desvirtuamento da atividade reguladora, tampouco conflito de interesses entre o Estado e o ente regulador, cumprindo a este o juízo de conveniência e oportunidade na implementação e execução do respectivo contrato de gestão. O controle de juridicidade é exercido, previamente, pelas Procuradorias das agências reguladoras, na qualidade de órgãos externos vinculados à Advocacia Geral da União, bem como, a posteriori, pelo Judiciário, em respeito ao princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CRFB), sobre os atos e normas editados por Agências Reguladoras, quando exorbitantes de seus limites legais, ou ainda, quando não guardarem relação de razoabilidade e proporcionalidade com os fins colimados pela Administração Pública.
Por fim, um dos temas mais polêmicos envolvendo as Agências Reguladoras se trata do seu poder normativo. Com efeito, a definição dos contornos do poder normativo das Agências Reguladoras é tarefa extremamente difícil, ante a falta de limites legais para tanto, bem como a própria falta de compreensão do Direito brasileiro sobre a matéria.
Com efeito, o poder normativo delegado às Agências Reguladoras não se limita a um mero executor da lei, aplicando-a ex officio, exercendo um papel de regulador de mercado, no sentido de corrigir suas falhas e garantir coexistência harmoniosa e pacífica de todos os entes que o compõem. Assim, além da clássica função de complementação da lei, possuem certa margem de discricionariedade técnica, podendo ir além da mera regulamentação legal.
Para tanto, ocorre a verdadeira delegação normativa, na própria lei instituidora da Agência, transferindo a competência para a normatização técnica de mercados do campo da lei para a seara dos atos administrativos infralegais.
Assim, no que se refere à aplicabilidade da norma, esta será delimitada, no que se refere a seus aspectos técnicos e não políticos, por meio da edição de um ato normativo derivado do Poder Constituído Executivo, nos termos e limites previstos na delegação que a lei trás.
Ressalte-se que não há qualquer violação ao princípio da legalidade (art. 5º, II, CRFB), uma vez que as Agências Reguladoras, na qualidade de autarquia especial e ente regulador de mercado, nada mais fazem do que cumprir suas missões institucionais, nos estritos limites de suas atribuições legais, quando edita ato que, por critérios técnicos, normatiza obrigações a serem observadas pelos entes que compõem o mercado regulador.
Outrossim, importa ressaltar que a obrigação já se encontra genericamente prevista em lei, cabendo às Agências Reguladoras fixar os parâmetros necessários para sua aplicação específica no mercado, por meio de ato normativo regulador.
A atividade normativa das Agências Reguladoras, portanto, fica limitada aos parâmetros estabelecidos na lei delegadora, isto é, os preceitos normatizados pelas Agências Reguladoras terão que estar em perfeita consonância com a legislação que verse sobre o tema, não podendo estar em conflito com a lei delegadora, que é hierarquicamente superior.
3 O SISTEMA BRASILEIRO DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA
Como visto, em que pese o legislador constituinte orientar a ordem econômica no princípio da subsidiariedade do Estado em relação ao particular, fundamentando-a na livre iniciativa, uma política de não intervenção mercadológica não deve significar um aval irrestrito ás liberalidades dos agentes econômicos.
Historicamente, dentro do modelo do estado liberal, a concorrência pressupunha, tão somente, uma pluralidade de agentes atuando dentro de um mesmo mercado. Todavia, o exercício sem limites da liberdade de concorrência gerou concentração de mercado nas mãos dos agentes mais fortes e a consequente eliminação dos mais fracos, fato que levou o Estado a repensar seu papel diante da ordem econômica, atuando no sentido de intervir na liberdade de mercado para garantir a coexistência harmônica dos diversos agentes que nele atuam, independentemente do poderio econômico que representam (AGUILAR, 2012, p. 262-265).
A preocupação com o aperfeiçoamento da legislação e do aparelhamento estatal brasileiro no sentido de defesa da concorrência se traduz na necessidade de possibilitar, de um lado, a atividade econômica nos moldes da CRFB e, de outro, a atuação do Estado como agente normativo e regulador da atividade economia no Brasil, ao qual compete fiscalizar, incentivar e indicar diretrizes para o setor privado, determinando-as para o setor público (AGUILAR, 2012, p. 267-273).
O art. 173, §4o, exige da lei a repressão ao abuso do poder econômico. Trata-se de peça importante para a livre concorrência, capaz de trazer consequências para a produção, circulação e consumo.
Assim sendo, para dar efetividade às previsões legais sobre a Ordem Econômica do Estado, mormente no que tange à defesa da livre-concorrência e da liberdade de mercado, foi criado o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
A defesa da concorrência é tema afeto não só à economia nacional, mas matéria de interesse coletivo, afetando a toda a sociedade diante da necessidade de garantia de competição harmônica dos agentes econômicos que nele atuam.
Por concorrência entende-se toda a ação de disputa saudável por espaço em determinado mercado relevante realizada entre agentes competidores entre si. É competição pela preferência dos consumidores, realizada entre fornecedores ou produtores de bens iguais ou semelhantes.
Trata-se, assim, do esforço empreendido pelo Estado na defesa da eficiência de seu mercado interno e de sua Ordem Econômica, isto é, a garantia que o Poder Público assegura a seus agentes privados que melhor operem no mercado, no sentido de dar ao consumidor final acesso a bens, produtos e serviços qualitativamente diferenciados, por preços quantitativamente mais em conta.
Com o fomento da competição, aumentando-se naturalmente o número de agentes privados concorrentes entre si, o Estado promove a pulverização do poderio econômico entre os mesmos, de forma que nenhum consiga impor sua vontade sobre os demais, tampouco sobre o Poder Público. Evitam-se, assim, desequilíbrios que possam conduzir as estruturas monopolizadas ou oligopolizadas, bem como a captura de interesses; além de se buscar criar uma economia eficiente (maior variedade de produtos pelos menores preços), por meio do estabelecimento de políticas públicas e de um ordenamento jurídico específico para tanto.
O objetivo final da defesa da concorrência é, portanto, tornar máximo o devido processo competitivo e, por corolário, o nível do bem-estar econômico da sociedade (FORGIONI, 2014, p. 125-126).
Economias competitivas (mercado interno legalmente competitivo) são corolário para o desenvolvimento econômico sustentável de uma Nação, a longo prazo. Nesse sentido, o desenvolvimento nacional constitui objetivo fundamental da República do Brasil (art. 3o, II, CRFB).
Para tanto, devem as empresas defrontarem-se com os incentivos adequados para aumentar a produtividade e introduzir melhores e novos produtos, gerando crescimento econômico e desenvolvimento nacional.
Sendo assim, mister se faz a adoção de uma série de mecanismos próprios, que vão desde a adoção de um planejamento econômico respectivo, no qual se priorize a edição de um ordenamento jurídico específico para estimular a concorrência e promover sua respectiva defesa, até a atuação de polícia administrativa, em caráter repressivo às condutas abusivas.
A defesa da concorrência e a proteção do mercado interno encontram-se previstos no art. 170, IV; 173, §4o; e 219 da CRFB, sendo destinada à proteção contra abuso de poder econômico, que leve à dominação de mercado, aumento arbitrário dos lucros e/ou eliminação da concorrência.
Por poder econômico entende-se a detenção dos meios de produção, concentrando-os nas mãos dos agentes de mercado. A CRFB reprime, apenas, o abuso do poder econômico, isto é, o seu uso voltado para a dominação de mercado (monopólio), para impedir a liberdade de iniciativa de todos os demais agentes que nele queiram ingressar, bem como para ser usado como fato para aumento abusivo de lucros, em detrimento do consumidor.
Por domínio de mercado entende-se a possibilidade de imposição arbitrária de vontade de um ou mais agente, a todos os demais que dele participem, traduzindo-se em submissão à vontade do agente dominante.
A eliminação da concorrência traduz-se na supressão das condições de participação isonômica no mercado em virtude da conduta de determinados agentes.
Por aumento arbitrário de lucro, entende-se o enriquecimento abusivo do agente, sem causa que o justifique perante o mercado, representando extração indevida da renda do consumidor para o agente distribuidor e/ou produtor.
A Lei 8.884/94 é conhecida como “lei antitruste brasileira”. Referida Lei restou tacitamente revogada pela nova lei de Proteção da Ordem Econômica, Lei n. 12.529/2011, a qual deu nova estrutura ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
Por estar ligada à proteção e defesa de interesses transindividuais, a lei de proteção da ordem econômica não deve ser interpretada de acordo com os institutos tradicionais do direito, cultivados para o trato de questões envolvendo conflitos individuais, que não adotam a perspectiva dos valores coletivos que a lei prestigia. Ademais, a inserção da concorrência como princípio da ordem econômica dá realce à promoção da concorrência e não apenas ao combate ao abuso do poder econômico que visa eliminá-la.
Atualmente, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência é formado por um ente judicante e um órgão auxiliar, encarregados da defesa da concorrência no país (art. 3º, Lei 12.529/2011): a Secretaria de Acompanhamento Econômico – SEAE (vinculada ao Ministério da Fazenda); e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE.
O objetivo desse sistema é a promoção de uma economia competitiva por meio da prevenção e da repressão de ações que possam limitar ou prejudicar a concorrência, com base na Lei 12.529/2011.
As denúncias de condutas infratoras serão encaminhadas ao CADE, que iniciará as averiguações preliminares ou, conforme for o caso, um procedimento administrativo, dotado de contraditório e ampla defesa. O CADE detém competência legal para julgar o potencial lesivo da ocorrência em questão. Assim, deverá manifestar-se, conclusivamente sobre a abusividade ou não da conduta, em face dos princípios norteadores da Ordem Econômica, observando-se, ainda, os termos contidos na Lei 12.529/2011.
Em caso de configuração de conduta abusiva, deverá determinar as providências cabíveis para coibi-la ou repará-la. As decisões do CADE não comportam revisão por parte do poder Executivo, podendo ser revistas pelo Judiciário pautados no princípio da inafastabilidade da Jurisdição (art. 5º, XXXV, CRFB).
Por fim, pode-se concluir que o sistema de defesa concorrencial adotado no Brasil é eclético, envolvendo tanto um sistema preventivo de proibição de condutas potencialmente danosas, quanto um sistema repressivo de punição, reparação e, se for o caso, desfazimento de práticas consideradas concorrencialmente nocivas, a teor do art. 1º da Lei n. 12.529/11.
4 A CONCORRÊNCIA NOS SETORES REGULADOS
O abuso do poder econômico não é um ato ilícito de fácil identificação. Ao contrário do que ocorre na relação de consumo, onde as manobras engendradas são mais perceptíveis pelo cidadão comum, a prática econômica abusiva exige, para ser diagnosticada e configurada, altos conhecimentos técnicos, bem como especialização e prática profissional.
As condutas que se traduzem em infrações à ordem econômica são as mais variadas possíveis, bastando, para a sua caracterização, a existência de potencial efeito danoso ao mercado, sendo independentes de quaisquer manifestações volitivas por parte dos agentes.
Logo, sua tipificação legal deverá ser aberta, com enumeração legal meramente exemplificativa, ou seja, apresentação de condutas que podem ser caracterizadas como infração à ordem econômica, sem prejuízo de quaisquer outras que venham a ser praticadas, independentemente de estarem ou não arroladas em lei.
Na análise de eventual infração anticompetitiva, as autoridades de defesa da concorrência não devem se ater apenas à verificação da conduta isoladamente, mas, ainda, a verificação do dano ou eventual efeito danoso da mesma e, ainda, ao nexo de causalidade.
Desse modo, não há como se avaliar se uma conduta irá caracterizar infração à ordem econômica, senão no caso concreto. Assim, importante ressaltar o alto grau de abstração e generalidade que a legislação antitruste, assim como as demais normas de Direito Econômico, devem ter para que a Administração Pública, na análise da materialidade de condutas abusivas e indícios suficientes de autoria, possam tipificá-las, mediante um exercício extensivo de interpretação e hermenêutica.
Nesse sentido, cumpre observar o disposto nos artigos abaixo transcritos da Lei 12.529/2011:
“Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
[…]
§ 1º. A conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no inciso II do caput deste artigo.”
“Art. 45. Na aplicação das penas estabelecidas nesta Lei, levar-se-á em consideração:
[…]
V – o grau de lesão, ou perigo de lesão, à livre concorrência, à economia nacional, aos consumidores, ou a terceiros;
VI – os efeitos econômicos negativos produzidos no mercado;”
“Art. 88. Serão submetidos ao Cade pelas partes envolvidas na operação os atos de concentração econômica em que, cumulativamente:
[…]
§ 5º. Serão proibidos os atos de concentração que impliquem eliminação da concorrência em parte substancial de mercado relevante, que possam criar ou reforçar uma posição dominante ou que possam resultar na dominação de mercado relevante de bens ou serviços, ressalvado o disposto no § 6o deste artigo.
§ 6º. Os atos a que se refere o § 5o deste artigo poderão ser autorizados, desde que sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os seguintes objetivos:
I – cumulada ou alternativamente:
a) aumentar a produtividade ou a competitividade;
b) melhorar a qualidade de bens ou serviços; ou
c) propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico; e
II – sejam repassados aos consumidores parte relevante dos benefícios decorrentes.”
Note-se que a infração de ordem econômica se trata de ilícito administrativo de tipificação aberta. Assim, sua caracterização, para fins de punibilidade, dependerá do seu enquadramento enquanto conduta danosa, potencial ou efetiva para o mercado. O mesmo não ocorre nos crimes contra a ordem econômica, uma vez que são ilícitos de natureza penal e de tipificação fechada.
Conforme explicitado anteriormente, como regra o Estado não intervirá na economia. Somente haverá motivo para promover a regulação de algum setor da economia se existir uma das chamadas falhas de mercado, que constitui toda a situação de anormalidade de efeito danoso, potencial ou efetivo, ao devido processo competitivo de determinado nicho de nossa economia, tendo resultados negativos para o bem-estar social.
Sendo assim, resta claro que somente haverá regulação onde o mercado privado, por si, não conseguir autorregular-se, isto é, quando não conseguir alcançar os fins colimados pelas políticas públicas adotadas pelo Estado, tanto no plano constitucional quanto no plano legal, tampouco alcançadas as necessidades inerentes à sua salutar manutenção, fazendo necessária a intervenção estatal (CARVALHO, 2012, p. 89).
Pode-se, nesse sentido, identificar duas formas de regulação distintas: a regulação privada e a regulação pública.
A autorregulação ou regulação privada decorre do processo de autocondução exercido pelo próprio mercado que, por si e sem a necessidade de interferências externas, demonstra-se capaz de garantir o respeito aos princípios que norteiam a ordem econômica, mormente a livre-iniciativa e a liberdade de concorrência. Via de regra, não há intervenção estatal em mercados capazes de se autorregularem (p.ex. eventos esportivos).
Já a heterorregulação ou regulação pública: decorre da necessidade que o Estado tem em interferir no mercado para garantir a observância dos princípios que norteiam a Ordem Econômica, diante das possíveis falhas que possa vir a apresentar, as quais necessitam ser corrigidas.
5 CONCLUSÃO
A preocupação com o aperfeiçoamento da legislação e do aparelhamento estatal brasileiro no sentido de defesa da concorrência se traduz na necessidade de possibilitar, de um lado, a atividade econômica nos moldes da CRFB e, de outro, a atuação do Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica no Brasil, ao qual compete fiscalizar, incentivar e indicar diretrizes para o setor privado, determinando-as para o setor público.
A regra é a liberdade de exercício da atividade econômica, como corolário da livre iniciativa (art. 170, parágrafo único, CRFB), na qual o Estado não deve interferir na manifestação de vontade dos seus cidadãos para tanto. Todavia, isso não significa que o Estado, nos casos em que se evidencie interesse da coletividade, não possa regular a atividade econômica, impondo requisitos para o seu exercício, atuando, inclusive, com poder de polícia administrativa para fazer valer e efetivar as suas medidas.
Assim sendo, embora o legislador constituinte oriente a ordem econômica no princípio da subsidiariedade do Estado em relação ao particular, fundamentando-a na livre iniciativa, uma política de não intervenção mercadológica não deverá significar liberdade irrestrita aos agentes econômicos.
E, justamente nesse contexto, é que ao mesmo tempo em que se assegura a livre iniciativa, permitindo-se o livre exercício da atividade econômica, há uma preocupação estatal em se primar pela concorrência justa e saudável dos agentes econômicos que operam nos mercados. Esse é o fundamento da criação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, por meio do qual o CADE, na qualidade de agência reguladora dotada de poder judicante, atua prevenindo e reprimindo atos que possam importar em concentração econômica ou abuso de poder econômico no mercado, em defesa, pois, do seu equilíbrio.
6 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
AGUILAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. 3. ed. Atualizada de acordo com a Lei 12.529/11. São Paulo: Atlas, 2012.
CARVALHO, Tomás Lima de. O Estado Democrático de Direito, as Estruturas para a Regulação do Mercado Financeiro e os Agentes Reguladores no Brasil. In: Roberto Luiz Silva; Sérgio Mourão Corrêa Lima. (Org.). Desenvolvimento & Mercado na Sociedade Globalizada. 1ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2012, v. 1, p. 49-93.
FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. 7. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. P. 125-126
MACHADO, Raphael Boëchat Alves. Sociedade de Economia Mista: Uma análise a partir da Lei n. 13.303/16. Porto Alegre: Fi, 2016 P. 49-50.